Profissão: dentista – os desafios do mercado

Profissão dentista
Foto: PIxabay

Com a nova resolução emitida pelo Conselho Federal de Odontologia em janeiro de 2019, a profissão de dentista ganha mais uma possibilidade de atuação: a harmonização orofacial. Mas, será que todo dentista pode atuar nesse setor? E será que vale a pena mesmo investir na especialidade? Para Paulo Roveri, dentista especializado em implantodontia e harmonização orofacial, há controvérsias. “Com a portaria que baixaram (resolução CFO-198/2019), basta um curso de curta duração em cada tratamento, o que eu acho um erro (…). Existem muitas intercorrências relacionadas ao ácido hialurônico, que é um preenchedor. Se ele atinge um vaso sanguíneo, por exemplo, causa necrose, perde-se tecido e formam-se verdadeiros buracos na face”, explica ele, que defende a especialização como forma de qualificar adequadamente os profissionais.

Ossos do ofício

Embora a odontologia tenha amplo campo de atuação e ofereça boas oportunidades de remuneração, é preciso conhecer todos os lados da profissão para ter certeza de que você tem o talento e as aptidões necessárias para ser bem-sucedido na carreira. Paulo diz que, mais importante do que tirar boas notas é ter destreza com as mãos. “Outra coisa importante é saber que vai estudar como um médico, mas não vai ser médico. O dentista é um pouco médico, mas é um pouco pedreiro (mexe com gesso), arquiteto, engenheiro, artesão… Uma mistura de várias coisas”.

Quer saber se a odontologia é para você? Confira a entrevista completa.

Quanto ganha um dentista? O salário médio desse profissional é de R$ 5.649 por mês (Fonte: Glassdoor)

PC: Como foi a sua introdução na carreira de odontologia?

Meu pai era dentista do exército e protético. Ele estudou na USP e, quando eu era criança, ia para a faculdade com ele. Então, estive envolvido com a profissão de dentista a vida toda. Em 1988, eu já trabalhava como auxiliar dele no consultório e entrei no curso técnico em prótese dentária do SENAC. Virei protético e comecei ia deslanchar. Fiz alguns trabalhos, como placas de ronco e apneia e tenho um prêmio científico. Em 1995 entrei na faculdade de Direito, terminei em 2000, mas era muito difícil entrar no mercado e eu já tinha o laboratório de protética. Então, em 2003 decidi fazer odontologia. Quando me formei, em 2006, já tinha uma bagagem grande de prótese, tinha estudado na Alemanha e consegui pacientes rapidamente.

Eu não trabalho com a odontologia comercial, costumo trabalhar apenas com a odontologia tradicional, como um médico da família. Só atendo por indicação e dedico mais tempo para o paciente, atendo com calma. Às vezes, marco apenas dois pacientes no período da manhã. Na odontologia comercial, muitas vezes, se atende cada paciente em 30, 40 minutos. Assim que terminei o curso de odontologia comecei a me especializar em implantodontia, porque em cima do implante vem a prótese e, como eu já dominava a prótese, 50% eu já sabia.

PC: O que é exatamente a implantodontia?

A implantodontia surgiu há uns 30 anos, no final da década de 1980 e trabalhava com a substituição da raiz do dente por um parafuso. Então, se alguém perdia ou quebrava um dente, fazia canal e não dava certo, o dente amolecia e era necessário remover a raiz. Essa pessoa ficava com um espaço protético vazio. Para colocar um dente nesse espaço, ou ele deve ser preso nas laterais – no caso da prótese fixa, vulgarmente conhecida como ponte fixa – ou se faz algo a partir do osso.

Um médico sueco chamado Branemark colocou uma câmera de titânio dentro do fêmur de um rato para filmar a atividade intracelular. Quando ele sacrificou o rato e tentou retirar a câmera, não conseguiu, porque uma célula não detectou o metal e formou-se osso em volta dele. A isso ele deu o nome de osseointegração. E passou a usar o titânio na odontologia, hoje também muito utilizado na ortopedia. Ele veio para o Brasil – um dos países que mais faz implantes no mundo – e fundou a Nobel Biocare (empresa que produz implantes dentários). O implante é um parafuso que substitui a raiz, tem rosca externa para parafusar no osso, e, por dentro, tem outro parafuso onde o dente é preso. E sobre o implante vai a prótese.

PC: O mercado de odontologia parece vasto. Em que áreas esse profissional pode atuar?

Temos o dentista cirurgião, o cirurgião buco-maxilo, que é o único que faz residência e o que mais se assemelha a um médico. E ele opera dentro de hospitais. Quando alguém sofre um acidente e há um dano muito grave no rosto quem vai ser chamado imediatamente para cuidar desse paciente é o cirurgião dentista buço-maxilo-facial. É ele quem vai reconstruir o rosto antes da ação do cirurgião plástico, porque é ele quem entende de engrenagem óssea, do mecanismo de mastigação da mandíbula, ele que parafusa o rosto. E tem ainda o ortodontista, que lida com aparelhos dentários. Outra especialidade é a dentística, que trabalha só com restauração e extração de dentes do siso, mas hoje todos os dentistas fazem isso, é o “basicão”, como se fosse o trabalho de um clínico-geral.

Existe ainda a endodontia, que lida, basicamente, com a realização de canais. E a semiologia, que trabalha com lesões bucais, mas é uma área com atuação muito escassa, porque o dentista não pode mexer, por exemplo, em um tumor na língua, só pode identificar. Há também os odontopediatras, que só trabalham com criança e a ortopedia funcional dos maxilares, que é muito parecida com a ortodontia, só que trabalha em fase de crescimento e, portanto, está ligada à odontopediatria.

PC: E agora também já existem muitos dentistas atuando na área de estética facial…

Sim. Em janeiro, o Conselho Regional de Odontologia (CRO) reconheceu a harmonização orofacial. Eu, inclusive, fiz a especialização antes de ela ser reconhecida, comecei em 2016. Em 2018, fiz cursos com um médico de estética em Harvard. E, embora exista um descontentamento de alguns setores da área médica, que dizem que nós não temos competência para realizar procedimentos estéticos na face, nós temos sim. Tanto é que um cirurgião buco-maxilo é o primeiro a ser chamado quando alguém leva um tiro ou sofre um acidente que afeta os ossos do rosto.

PC: E você vê isso com uma oportunidade para os profissionais da odontologia?

Os biomédicos e farmacêuticos também podem aplicar botox, por exemplo, além dos médicos e dos dentistas. Então, a área de estética, além de ser só uma área a mais, não é muito rentável, porque os materiais são muito caros. Por exemplo, um preenchedor facial, como o Princess de 1 ml, está na faixa de R$ 600. Eu faço em um caso ou outro, ofereço como um complemento.  Mas o implante é muito mais rentável para mim. A área da odontologia que hoje dá mais dinheiro – mas pode ser que venha a mudar, como aconteceu na ortodontia – é o implante. Acredito que isso ainda vai perdurar. A estética seria um complemento.

Apesar de que muitos profissionais que tinham largado a odontologia, por causa da dificuldade de penetrar e se fixar nesse mercado, agora voltaram por causa da estética e agora só trabalham com isso. Muitas dessas pessoas já tinham um rol de amigos que eram clientes em potencial, ou seja, é preciso estar nesse meio para conseguir ser bem-sucedido.

PC: Que procedimentos o dentista que atua como harmonização orofacial pode realizar?

Pode aplicar botox, fazer preenchimento facial com aplicação de ácidohialurônico, empinar nariz, fazer lipo mecânica de papada, retirando gordura da papada e injetando em outro local onde falta gordura. Fazer o contorno do rosto… um verdadeiro trabalho de escultura.

PC: E o que é preciso para entrar nessa área?

Primeiramente é preciso ter a graduação e, depois, a especialização em harmonização orofacial. Mas com a portaria que baixaram (resolução CFO-198/2019), basta um curso de curta duração em cada procedimento, o que eu acho um erro. Porque, embora nós conheçamos a face, tenhamos estudado essa área e não seja tão difícil aplicar botox, por exemplo, existem muitas intercorrências relacionadas ao ácido hialurônico, que é um preenchedor. Se ele atinge um vaso sanguíneo, por exemplo, causa necrose, perde-se tecido e formam-se verdadeiros buracos na face. Acontecem casos de perda da ponta ou da asa alar do nariz, pedaço de lábio, até cegueira. Então, é muito complicado trabalhar com isso. E muitas pessoas fazem um curso de um fim de semana de preenchedores e saem aplicando. Mas existe a especialização. Eu sou especialista em harmonização orofacial pelo MEC e uso como um complemento e não como carro-chefe.

PC: Qual é o maior desafio da profissão de dentista para quem acaba de se formar?

Conseguir pacientes. É por isso que muita gente vai para clínicas comerciais e é obrigada a atender um paciente a cada 30 minutos. Tem que correr, tem que vender, é mais parecido com comércio do que com a odontologia. E há muitas clínicas, a concorrência é bem forte. Eu não trabalho assim, não faço propaganda, não atendo convênio e trabalho bastante. Estou satisfeito.

Paulo Roveri: “Não adianta tirar 10 em tudo na parte teórica se não tiver habilidade manual.” (foto de 2016)

PC: Quais são as partes não tão agradáveis do dia a dia da profissão de dentista?

Nós trabalhamos curvados e fazemos muitos movimentos repetitivos. Por isso, a maioria dos dentistas, depois de 20 anos de profissão, têm algum problema na coluna ou nos ombros. É uma profissão desgastante. Eu tive lesões nos dois ombros e fiquei afastado durante um tempo, por causa do esforço repetitivo. Inclusive, estou afastado das funções desde setembro de 2018, porque escorreguei na escada e já tinha um problema na coluna. Passei por uma cirurgia em março desse ano e tive uma infecção hospitalar. Agora estou com os movimentos limitados e fazendo fisioterapia.

PC: Mesmo agora com bastante experiência na profissão de dentista você continua se atualizando?

Sim. É preciso estar sempre estudando. Eu fiz uma mini residência na universidade da Flórida, estudei em Harvard e agora vou começar uma especialização em buco-maxilo, embora não pretenda trabalhar em hospital, é mais por um sonho. Estou sempre investindo em cursos, mesmo porque a odontologia está mudando. O futuro é a odontologia digital. Ainda vai demorar, mas a tendência é essa.

PC: Você acredita que a tecnologia vai ajudar a odontologia a se desenvolver e até a evitar os problemas de saúde que os profissionais desenvolvem?

Acredito que vai melhorar um pouco. Mas atividades como o desgaste do dente no tratamento de um canal, por exemplo, não vai mudar muito e o profissional terá que fazer. Mas vai agilizar no processo de próteses. A microscocopia digital vai ajudar a endodontia também. O profissional terá um microscópio gigante acoplado ao teto do consultório que amplia o tamanho do dente e, assim, o profissional não tem como errar durante o tratamento de um canal.

PC: Mas é interessante observarmos que a tecnologia não irá substituir o trabalho do dentista.

Não irá. Já o protético é um profissional que está sumindo. Quem sabe fazer a prótese na mão, como eu, continua fazendo. Mesmo assim, vou aprender a fazer de forma digital. Mas quem não aprender, vai sumir, porque só vai existir a digitalização.

PC: Que conselhos você pode dar para quem pensa em seguir a profissão de dentista?

Para mim, o mais importante é ter habilidade manual. Existem técnicas de escultura, mas se a pessoa não tem o talento, vai sofrer muito. Não adianta tirar dez em tudo na parte teórica, porque, quando o aluno senta na cadeira na clínica, se não tiver destreza e firmeza nas mãos, não será bom na profissão de dentista. Por isso, antes de saber se tem vocação, é preciso saber se tem aptidão. E, depois, ter certeza de que gosta de ficar horas parado, sentado em um lugar fechado concentrado. Eu sou hiperativo, mas desligo enquanto estou trabalhando no consultório. Fico horas trabalhando e “viajo”. Outra coisa importante é saber que vai estudar como um médico, mas não vai ser médico.

O dentista é um pouco médico, mas é um pouco pedreiro (mexe com gesso), arquiteto, engenheiro, artesão… Uma mistura de várias coisas. Às vezes, ele tem que desgastar uma resina suja de uma dentadura. Não pode ter nojo de baba. Tem pacientes que chegam ao consultório com a boca deplorável e não dá para ter nojo.

PC: E, para finalizar, gostaria de saber o que é sucesso, na sua opinião, e se você se considera bem-sucedido na profissão de dentista.

Considero-me bem sucedido. No começo da profissão, quando era protético, eu queria ter empresa, funcionários e hoje é exatamente o contrário. Quase todo ano vou para os Estados Unidos, estudo fora. Consigo pagar a faculdade da minha filha – que também faz odontologia – e vivo em paz. Para mim, sucesso é viver em paz e conseguir pagar as contas. Eu não tenho sonho de ter Mercedez na porta. Vivo numa boa. Em alguns dias de sol, eu fecho tudo, faço um remanejamento da agenda de pacientes e desço para o Guarujá. Passo o dia lá. Isso, para mim, é sucesso.