Quando a palavra “propósito” ainda nem tinha ganhado a fama que tem hoje, Renata Roquetti já tinha se conectado ao seu e nem sabia. Formada em Administração de Empresas pela Universidade de São Paulo (USP), ela é a idealizadora da Semente, uma empresa que realiza projetos de cultura e esporte com o objetivo de transformar realidades.
As artes rondam sua vida desde a infância, em Barretos, no interior de São Paulo. “Em casa tinha muita música e literatura. E minha avó era apaixonada por poesia”, relembra ela, que venceu seu primeiro concurso de poesia aos 13 anos e, aos 14, já fazia parte de um grupo de teatro. “Na época, não tinha plena consciência de onde isso ia me levar, mas começou também um certo conflito interno, porque eu era muito boa aluna e a arte e a cultura nunca foram valorizadas como profissão. Era algo que se fazia como hobby”.
Em 2013, depois de construir uma carreira promissora na maior editora de revistas do país – a Abril –, Renata pediu demissão do cargo de gerente sênior e começou a construir os alicerces de seu propósito. Até que, finalmente, em 2016, a arte e a cultura ganharam protagonismo em sua trajetória, com a criação da Semente. “A ferramenta cultural pode ser um meio lúdico de dar voz às pessoas (…). Posso estar sendo utópica, mas é o que me move e eu quero, cada vez mais, plantar essa sementinha.”
Quanto ganha um empreendedor? A média salarial desse profissional é de R$ 3.790 / mês (Fonte: Glassdoor)
PC: Seus pais queriam que você seguisse uma profissão mais tradicional, como medicina e direito, por exemplo?
Acredito que era o que eles viam como mais seguro para mim. E eu, hoje, como mãe, entendo esse pensamento. Nós vivemos na sociedade do capital, então não parece fazer sentido ter um ofício que não é considerado rentável, que não faz você ser “bem-sucedido”… o sucesso está muito ligado a ganhar milhões de reais e isso é muito cruel, porque muitas pessoas têm outros sonhos, que não se enquadram nesse modelo capitalista de sucesso. Sucesso não é necessariamente ter um bom cargo e ser promovido uma vez por ano. Eu vivi isso durante um bom tempo até que não fez mais sentido.
PC: E como você administrou todo esse conflito quando chegou o momento de escolher a faculdade?
Fiz colegial em uma escola particular, com bolsa de estudos. Nessa escola, a competição era muito estimulada. Era a preparação para passar nas melhores faculdades. Então, o melhor em termos de atendimento àquelas métricas, participava de um grupo separado dos demais. No terceiro colegial chegou o momento de escolher o que cada um queria ser. Eu estava muito indecisa. Tinha 17 anos e nunca tinha parado para pensar no que me fazia feliz. Assim, eu fui para o que era mais socialmente aceito e prestei medicina.
PC: Influenciada pela profissão do seu pai?
Provavelmente. E também por ser a mais difícil nas notas de corte. Passei nas primeiras fases de todas as faculdades públicas. Mas não passei na segunda fase. Fiquei sem saber o que fazer. Me deram bolsa para fazer cursinho, mas, nesse meio tempo, eu também fazia parte de um grupo de teatro e tinha participado de festivais no interior de São Paulo. Fui premiada como atriz revelação no primeiro festival de que participamos e, no segundo, como melhor atriz.
No primeiro ano de cursinho, prestei vestibular para jornalismo, por achar que tinha um pouco a ver com arte. Além disso, já tinha vontade de trabalhar na editora Abril e fui traçando uma carreira querendo me aproximar da cultura, mas sem saber muito bem como. Em 2000, passei em 13º lugar em jornalismo na Unesp de Bauru e em Comunicação Social na USP, escolhi a USP, mas nesse ano houve uma das maiores greves da história dela. Falei para o meu pai que não queria estudar Comunicação Social e ele me disse para viver do que eu quisesse, mas ele não poderia me bancar. Eu ganhava muito pouco dinheiro com o grupo de teatro e fiquei um ano muito aflita, com muitas indecisões.
PC: E como você resolveu isso?
Um tio empresário me aconselhou a estudar administração, que me possibilitaria trabalhar com o que eu quisesse, tentar um emprego em uma empresa e, depois, viver da minha arte. Passei no vestibular em Administração da USP, fui morar em São Paulo e me aquietei. Descobri que eu tinha muito de um administrador, de um planejador, de alguém que consegue enxergar processualmente os objetivos, que consegue organizar e executar ideias. Mal sabia que eu tinha mais de empreendedora do que de administradora. Apesar de que o empreendedor tem que ser um administrador.
Durante a faculdade, participei de movimentos de cultura, de teatro, escrevi poesias, contribuí com o jornal literário. A USP é um ambiente muito efervescente, então eu pude conviver e fazer aula na área de ciências sociais, de artes. Eu passava o dia na USP. Desde o primeiro ano trabalhei na universidade para me manter em São Paulo. Primeiro, fui monitora de um professor, depois do chefe da Administração, depois da pós-graduação, ou seja, fiz uma rede de relacionamentos muito legal no meio acadêmico.
PC: Chegou a pensar em dar aula?
Cheguei a cogitar ficar no meio acadêmico, mas alguns professores me aconselharam a observar o mercado antes de decidir. Muitas empresas grandes buscam mão de obra na USP para trabalhar como estagiários. E eu sempre achei que as pessoas não deveriam ser escolhidas, mas sim escolher a empresa em que queriam trabalhar. E esse é um movimento que é muito difícil para muitas pessoas entenderem. A maioria se submete ao jogo mesmo que não acreditem nele, por precisarem do dinheiro. Mas eu nunca consegui atuar em um sistema do qual eu não sou a favor. E a conversa das empresas que queriam nos contratar até parecia fazer sentido, mas, para mim não fazia sentido nenhum. Cheguei a prestar vários programas de estágio e passei em alguns deles.
PC: Então você chegou a fazer estágio em alguma dessas empresas?
Não. Mas nessa época, eu passava pelo prédio da Editora Abril e imaginava que deveria ser muito legal trabalhar lá, porque via gente saindo de terno e gente saindo de chinelo. Aparentava ter muito propósito e poderia me pagar um bom salário. Então, prestei o programa de estágio deles e me identifiquei muito com algumas gestoras que me entrevistaram. Uma delas me fez duas perguntas que saíram um pouco do óbvio: “qual é a sua relação com a sua família?” e “o que uma empresa deve ter para que você queira trabalhar nela?” Eu tinha passado por vários processos seletivos, mas ela foi a única pessoa que me tratou como um ser humano. Eu adorei. E ela virou minha gestora depois.
PC: Você passou nesse processo seletivo?
Passei e, quando entrei, rolou uma identificação imediata. Entrei como estagiária de uma área gerencial, de vendas de assinaturas. Eu fazia a análise que hoje se chama de data base marketing, que é utilizar dados de clientes para definir ações de marketing direto. Depois de quatro meses fui escolhida para ser a porta-voz da área para melhorar a comunicação interna do setor. Com mais quatro meses já me efetivaram e me chamaram para concorrer no programa de trainee da empresa.
Na época, o grupo Abril tinha a Abril Educação, as áreas de revistas, mais a MTV e a TV paga, TVA. O programa de trainee era para trabalhar nesses vários negócios diferentes. Eram 10 vagas e tinham 12 mil inscritos. Fui selecionada e me apaixonei ainda mais pela empresa, conheci o doutor Roberto (Civita), que era a grande cabeça da editora. Me encantei com o ser humano por trás do empresário, um homem apaixonado pelo que fazia, engajado e com muito conhecimento sobre o mercado no qual ele atuava. Percebi que realmente fazia todo sentido trabalhar ali.
PC: Em qual veículo você começou sua experiência como trainee?
Na revista Veja, carro-chefe da Abril, em 2007, na área de publicidade, que era a responsável por um terço do faturamento da revista. Era uma área muito puxada, mas aprendi muito sobre negócio, sobre vendas e foi uma experiência que fortaleceu a minha visão sobre como conduzir um negócio. A Veja era o produto com maior faturamento da empresa, então havia todo um cuidado em como vender o espaço da revista, que era tão preciosa, para o mercado, como fazer essa coisa tão delicada entre negócio e conteúdo. Aprendi a transitar entre mundos aparentemente conflitantes.
PC: Em um programa de trainee os profissionais rodam por várias áreas da empresa. Por quais áreas você passou na Abril?
Da Veja, fui para o marketing de um título novo. Participei da concepção do projeto, desde o plano de negócios (como torná-lo efetivamente rentável) até a identidade visual. Era a revista Gloss, a primeira em formato pocket do Brasil, que foi descontinuada. Eu tinha uns 26 anos, trabalhava com a diretora superintendente da editora e foi uma experiência incrível. Depois, me pediram para ficar na área financeira das revistas femininas, para aprender como funcionavam as finanças do grupo. Queriam que eu ficasse nessa área porque eu tinha visão de negócio, uma perspectiva empreendedora. Mas eu não gostava de trabalhar com planilhas o dia inteiro. Até hoje uso planilhas como ferramenta para gerir meu negócio, mas não é essa a minha atividade fim.
Quando terminei o programa de trainee, fui convidada para ir para a área financeira e para voltar para a área de assinaturas, que foi onde comecei. Optei pela área de assinaturas, onde passei mais um ano, trabalhando para melhorar a performance de um canal de vendas da editora. Em seguida, em 2012, fui promovida a gerente de assinaturas das revistas femininas. Era a área para a qual eu queria ir, onde poderia misturar a criatividade com o planejamento do produto. Era onde queria chegar desde que entrei na Abril. Fui participar de um projeto inovador na época, que era transformar todas as revistas no formato digital, ajudando o canal de assinaturas a ter um relacionamento contínuo com o assinante. Então participei da construção desse sistema para o online.
PC: Você chegou onde queria. Qual era, então, o seu sentimento para decidir pedir demissão e seguir seu propósito?
Eu estava com 33 anos. E, durante os oito anos que trabalhei na Abril nunca deixei a cultura de lado. Participei de grupos de teatro, de concursos de poesia… Em 2013, participei de uma mostra de haikai via Twitter e a curadora me chamou para dar uma oficina de poesia no Sesc Santo Amaro, ganhando um décimo do que eu ganhava na Abril. E eu via mais sentido estar no Sesc do que na empresa. Estava realizada na Abril, ou seja, sentia que tinha realizado o que eu precisava lá. A empresa não tinha mais nada para me proporcionar, nem eu para ela. E, na época, a Abril já estava se distanciando do propósito que tinha me encantado quando eu entrei lá.
Talvez porque o Doutor Roberto estava na UTI, a empresa estava mudando, a maneira como o negócio estava sendo tratado fugiu do que eu tinha como crença. E eu era sempre puxada para esse movimento da poesia e senti que estava na hora de ir. Até que um colega de faculdade me chamou para ajudá-lo em uma empresa de captação de recursos para o setor da cultura. Pedi demissão da Abril e fui com toda a minha bagagem de negócio, de vendas, de marketing, de gestão de produto, ganhar 1700 reais no SESC e ajudar esse colega. Foi uma experiência que me ensinou muito, principalmente, a trazer mais consciência de que a minha paixão existia, mas eu precisava fazer essa movimentação de forma mais consciente e profissional e não dava para me ligar a qualquer pessoa. Eu tinha um know how e uma experiência que tinham valor no mercado.
PC: E de que forma você descobriu qual era o seu propósito?
Depois de um ano e meio com esse colega decidi sair dessa empresa e fiquei quase um ano parada. Foi um ano que modificou muita coisa pessoalmente, por exemplo, nos meus hábitos de consumo: de comer fora todos os dias em restaurantes passei a fazer minha própria comida. Fiz uma reflexão muito profunda sobre os motivos da minha existência e a forma como eu me colocava no mundo.
Entendi que eu tinha uma missão de fazer a arte e a cultura serem reconhecidas como bens intelectuais, emocionais e financeiros e que as pessoas pudessem viver disso. Tem muita gente empregada nessa área. No Brasil hoje mais de 4% do PIB funciona porque a cultura existe. A emoção pode, sim, ser um ofício e ela tem o poder de transformar, de tocar o outro, de fazer refletir questões internas, assim como políticas e econômicas. Decidi levar a poesia, o samba, o teatro para onde eu pudesse, para que o maior número de pessoas veja valor nisso. Fui estudar. Fiz um mestrado em empreendedorismo na USP. Defendi minha tese sobre captação de recursos para o setor da cultura e com esse mestrado nasceu a Semente, que é a minha empresa.
PC: Como surgiu esse nome? E o que é a Semente?
Eu queria um nome que traduzisse uma coisa que é forte e leve, ao mesmo tempo. A semente é pequena, mas tem uma potência gigantesca de se transformar em algo maior, como uma árvore, uma flor e que, além de embelezar, dá sustento. Eu estou há três anos e meio com a Semente e no meio desse caminho, conheci meu marido, o Rodrigo, que tinha um vínculo forte com o esporte, por ter sido atleta, e nós unimos a missão de levar cultura e esporte para o maior numero de pessoas possível dentro do país. E fazer com que eles cheguem até pessoas que não tenham condições socioeconômicas de pagar por isso.
Nós entendemos que podemos mobilizar toda a cadeia que investe na cultura e no esporte, principalmente, empresas privadas, fazendo com que elas enxerguem que elas precisam ter um propósito. Tem muita empresa falando balela sobre causa, propósito e engajamento social e não coloca em prática. Enquanto as empresas não enxergarem que o propósito social e a prática precisam andar juntos e que o propósito só existe se ele é praticado, elas não vão a lugar nenhum. Na minha visão, o mercado de capital vai ruir se não entender que ele é feito de gente. E que as pessoas têm poder de escolha.
PC: Como exatamente a Semente se conecta com as empresas para mudar isso?
Nós produzimos projetos de esporte e cultura. Por exemplo, projetos que levam a ferramenta de fotografia para mulheres que sofreram violência doméstica; exposições de fotografia para contar a história das mulheres ao longo de todos os séculos; saraus de poesia para a periferia, etc. Para esses projetos acontecerem, nós precisamos de dinheiro. Esse dinheiro vem, hoje, de editais públicos e privados. Ou do governo ou por meio de verba direta dessas empresas ou de verbas incentivadas, como no caso da Lei de Incentivo à Cultura (antiga Lei Rouanet). Essas leis de incentivo são políticas públicas que permitem que as empresas direcionem parte de seus impostos – federais, estaduais ou municipais – para projetos culturais e esportivos.
PC: Então vocês fazem tudo, desde a concepção do projeto à execução?
Exatamente. Somos nós que produzimos. Para isso, precisamos do dinheiro, que vem, geralmente, das empresas ou do governo. Hoje, praticamente 90% do dinheiro que vem para a Semente chega por meio das empresas privadas que são nossas clientes, como a Eaton SA, a Chevron e a Tokio Marine, multinacionais. Nós vamos atrás e desenhamos a causa social delas, de acordo com a forma como elas querem atuar. Para isso, fazemos perguntas como: “o que vocês querem melhorar no seu entorno?”, “como vocês querem melhorar a comunidade na qual vocês atuam?”. A partir daí, desenvolvemos o projeto.
PC: As empresas brasileiras já têm consciência da importância de trabalhar com propósito?
Agora, com três anos e meio de existência, estamos começando a ficar conhecidos nesse mercado e estamos nos deparando com organizações que ainda não entenderam que o objetivo de investir em um projeto não é “ficar bem na fita”. Essa não é a forma como nós trabalhamos. Por mais que tenhamos um caminho mais árduo, decidimos não desviar do nosso propósito, que é encontrar empresas que realmente enxerguem na cultura e no esporte uma ferramenta de transformação social. Que elas podem, por exemplo, levar cinema para uma comunidade e que isso vai ser significativo para essa comunidade. Ou que é importante empoderar uma mulher que sofreu violência doméstica, para que ela aprenda a escrever e falar sobre as dores dela. E que a ferramenta cultural pode ser um meio lúdico de dar voz às pessoas.
Então, acredito que se pudesse traduzir a nossa grande missão seria “difundir a cultura e o esporte como ferramentas a que toda e qualquer pessoa tem direito”. Nós sempre tentamos nos conectar com a pessoa que está por trás do decisor da organização: “o que ela, como pessoa, quer fazer de diferente?”. Porque, afinal, as organizações são feitas de gente, e quem for consumir daquela organização, mais cedo ou mais tarde, vai consumir porque ela é legal e faz a diferença. Posso estar sendo utópica, mas é o que me move e eu quero, cada vez mais, plantar essa sementinha.
PC: Quais são os principais desafios de ser empreendedor no Brasil e, especialmente, na área da cultura?
Tem que ter muita coragem para empreender no Brasil, porque nós temos um sistema fiscal que não é favorável para o empreendedor, ainda mais para o pequeno empreendedor. Não temos retorno daquilo que pagamos, o que estava melhorando e espero que seja mantido no atual governo. Portanto, o principal desafio é a questão financeira. A segunda questão – e meu mestrado se baseou nisso – é que o setor da cultura praticamente só existe hoje no país graças às leis de incentivo. E os mecanismos das leis de incentivo são vinculados ao resultado econômico das empresas. Óbvio que existem outros editais, verba direta, mas o mercado cultural brasileiro está viciado em leis de incentivo. Por um lado, é bom que as leis existam, mas por outro, ficamos vinculados aos resultados econômicos das organizações.
Outro desafio é que nós trabalhamos com a causa social e encontrar empresas que vejam sentido nisso é um trabalho de formiguinha. Além disso, diferentemente de alguém que trabalha para uma organização, o desempenho do empreendedor é totalmente responsável pela receita dele. Então, eu trabalho o tempo inteiro, no sábado, no domingo, não tenho férias. Tive meu filho e no terceiro dia depois do parto normal, ainda no hospital, eu estava fazendo uma reunião. Mas o empreendedor tem a vantagem de ser dono do próprio tempo. Essa é a grande maravilha de empreender e eu não abro mão disso. E, apesar de ficar cansada, não sinto como um peso. Tenho o privilégio de trabalhar a hora que eu quero e, principalmente, como eu quero.
PC: O que é sucesso para você?
É ser dona do meu tempo e atingir o propósito ao qual eu estou me dedicando. Cada vez que fecho um projeto e sei que ele vai chegar a pessoas que não teriam acesso se o nosso trabalho não estivesse sendo feito, sinto-me realizada. Então, considero-me uma mulher de sucesso.