Segurança psicológica: cultura que gera resultados

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A enfermeira Débora Andrade estava prestes a completar seis meses em um novo setor do hospital. Um dia, recebeu um telefonema ríspido da gerente repreendendo-a por não ter avisado sobre o mal funcionamento de um equipamento. “Minha colega que cuidava dessa parte mais administrativa estava em férias. E, na correria dos atendimentos, eu realmente esqueci de reportar o problema”, conta a profissional. Na ocasião, Débora ainda recebeu um ultimato da chefe: caso acontecessem novos episódios como aquele, ela providenciaria sua transferência para outra unidade. “Foram mais cinco meses de tensão. Nas reuniões da equipe, eu quase não falava por medo de dizer alguma bobagem e chamar a atenção da gerente”.

O medo e a hesitação para expressar ideias, opiniões e, até mesmo para cometer erros, são fortes marcas de um ambiente de trabalho em que não existe segurança psicológica. Se você percebe que precisa se policiar o tempo inteiro sobre o que diz na sua empresa, então você sabe o que é, embora talvez nunca tenha ouvido o termo.

Mas, afinal, o que é segurança psicológica?

O conceito de segurança psicológica foi criado em 1999 pela professora Amy Edmondson, da Harvard Business School. Em princípio, ela observou que as empresas que tinham um ambiente confiável obtinham melhores resultados. “Segurança psicológica não é sobre ser legal. É sobre dar feedbacks sinceros, admitir erros abertamente e aprender uns com os outros”, disse Amy em entrevista para o podcast HBR IdeaCast do Harvard Business Review.

Além de oferecer inúmeras vantagens para as organizações, criar locais de trabalho psicologicamente seguros pode ser determinante para incentivar o engajamento dos funcionários nas questões da empresa. Portanto, discutir o tema é, certamente, uma necessidade no mercado atual. Por isso, conversamos com o consultor de gestão, governança e desenvolvimento organizacional Anderson Siqueira. Ele é o idealizador da Consense, uma empresa de consultoria e treinamentos para processos organizacionais de alta performance. “A segurança psicológica é consequência de um ambiente que valorize os resultados tanto quanto valoriza as pessoas, garantindo que humanidade e saúde sejam inegociáveis”.

PC: O que é segurança psicológica?

Discutir segurança psicológica sempre foi um item divisor de opiniões dentro das empresas. A diferença é que vivemos uma época que nomeia mais precisamente as coisas. Isso é muito positivo, pois cria reflexões mais abrangentes sobre temas antes negligenciados, e este é um destes casos. Vejo a segurança psicológica como um conjunto de ações e estruturas processuais que permitam que o ambiente de trabalho não seja regido pela tensão e pelo medo, mas pela coragem e contribuição. Ou seja, um ambiente em que as pessoas se sintam encorajadas a contribuir e relatar suas inabilidades ou erros, sem o medo constante de retaliação, por exemplo.

PC: Como a falta de segurança psicológica pode afetar o ambiente de trabalho? Isso pode impactar nos resultados da empresa?

Especialmente nos processos que envolvem criatividade e inovação. Já é sabido que a tensão provocada pelo medo impede a dedicação efetiva das pessoas em processos de alto risco. Porém, pode-se notar também que ambientes sem segurança psicológica carecem de participação e comprometimento, o que naturalmente impacta o alcance de resultados acima da média.

Tivemos casos de clientes da Consense em que a falta de segurança psicológica impactava aspectos básicos da cultura do negócio. Um exemplo era a competição excessiva, que nestes casos se tornou regra, como resultado de anos de construção de ações, narrativas e processos focados em separar pessoas, expor resultados negativos sem cuidado, negligência com relação a comportamentos negativos e antiéticos, etc.

PC: Qual é a responsabilidade do RH para cultivar a segurança psicológica nas empresas?

Entendo que a área de Recursos Humanos tem um papel duplo de apoiar e incentivar a evolução da liderança. Esta sim, é responsável por cultivar a segurança psicológica. Digo isso porque a diferença é feita no dia a dia, nas pequenas coisas, no feedback, que inclui e não denigre e, também, na integridade do próprio líder, que demonstra para o time qual é o tipo de relação e cultura desejadas.

PC: Qual é o papel dos funcionários para assegurar um ambiente psicologicamente seguro? Qual é o papel do gestor?

Como falei anteriormente o papel principal é exatamente do líder. Acredito que aqui cabe um ponto importante que é a crença de que a segurança psicológica apenas “favorece” o colaborador. Essa é uma visão reducionista e bastante rasa. O ponto principal está na criação efetiva de uma cultura ética baseada em valores como humanidade, respeito e integridade. O que, naturalmente, cria ambientes não apenas seguros psicologicamente, mas também virtuosos, focados em resultados e sustentáveis. Também é segurança psicológica garantir, com efetividade, que os valores e princípios éticos sejam cumpridos, com punições previstas, se necessário, para comportamentos que comprometam tais códigos organizacionais. E isso acontece justamente a partir do movimento de garantir para o conjunto do negócio que exista um regimento seguro e saudável para impedir desigualdades e corrupção.

PC: Como se detecta um ambiente de trabalho psicologicamente inseguro? Por onde se começa a mudar esse cenário?

Acredito que existem níveis de insegurança neste sentido. Então, é preciso cuidar para não generalizar os sintomas. O que mais se percebe como sintomas de ambientes assim é a ausência de participação das pessoas em projetos coletivos, como reuniões, o baixo comprometimento em projetos – especialmente os organizacionais. Além disso, a deslegitimação de processos coletivos e organizacionais, a percepção clara de medo de retaliações no trabalho diário ou em projetos que envolvam risco, a grande incidência de erros no dia a dia. Acrescente-se a isso relatos de assédio moral, práticas racistas e preconceituosas, exercício indevido de poder, comportamentos antiéticos e que violem regras de conduta e compliance. Mais adiante, a incidência constante de problemas psicológicos, como o estresse, a ansiedade, o pânico, a estafa e o burnout e doenças não psicológicas também, como as inerentes ao trabalho e acidentais.

Mudar o cenário implica, primeiramente, reconhecer o problema. Poucos gestores acreditam que os desafios de seu negócio passam pela necessidade de se criar uma cultura de segurança psicológica. E este é o ponto para se mudar o cenário: entender que segurança psicológica é a consequência de um ambiente que valorize os resultados tanto quanto valoriza as pessoas. Garantindo que sua humanidade e saúde sejam inegociáveis para o negócio.

PC: As empresas brasileiras, de modo geral, já entenderam a real importância da segurança psicológica?

Não tenho dados para falar nacionalmente. Em nossa realidade, aqui na Consense, a percepção é de algo muito incipiente ainda do ponto de vista mais abrangente. Poucos se referem ao tema abordando seu conceito claramente e acredito que isso tem a ver com o que falei no início, sobre os nomes que damos para legitimar movimentos que acontecem sem as nomenclaturas. A sensação é, a meu ver, positiva, mas percebo também que existe pouco esforço em conectar resultados com segurança psicológica e os esforços têm sido ainda mais fracos justamente por conta da insegurança psicológica que permeia o ambiente social brasileiro como um todo, o que – naturalmente – contamina o ambiente dentro das empresas.

PC: Que iniciativas práticas podem ser implementadas para que a cultura da segurança psicológica se torne uma realidade nessas corporações?

A adoção de um comportamento alinhado com a segurança psicológica é o principal caminho. Isso deve acontece a partir de uma estrutura iniciada no mais alto escalão do negócio, ou seja, na adoção de uma carta de valores efetiva, construída pelas pessoas. Em seguida, a tradução destes valores em um código de condutas, que considere as diferenças departamentais, seja factível e mensurável. Por fim, o estabelecimento de um comportamento alerta e ativo da liderança em educar suas pessoas a partir destes princípios e oferecer feedback transparente e cuidados para os comportamentos alinhados e desalinhados.

Juntamente com esta estrutura, é possível ainda estabelecer reuniões organizacionais que discutam os valores e o tema da segurança psicológica, implantar pesquisas para medir a percepção das pessoas em relação ao tema e – claro – programas coletivos de aprendizagem que apoiem a adoção de determinados comportamentos e a exclusão de outros que comprometem ou apoiam o cultivo de um ambiente seguro.

PC: Existe um limite para a segurança psicológica? É necessário estabelecer um ponto até onde os colaboradores podem ir?

Acredito que essa crença seja uma das consequências do discurso raso sobre o assunto. Segurança psicológica não é um benefício para ir longe demais, não é um diferencial para ser vendido para novos talentos. Segurança psicológica é um valor, um aspecto cultural, bem como a inovação e o respeito, por exemplo. Alguém diria que existem limites para até onde o colaborador pode ser respeitoso? Até onde ele pode ser inovador? Ora, é justamente aí que mora uma questão interessante, pois a inovação, sim, é comprometida pela ausência de segurança psicológica. Ou seja, a visão madura e adequada sobre o tema permite que não tenhamos essa questão em mente.

PC: Qual a importância da comunicação para se criar um ambiente psicologicamente seguro?

A comunicação é tudo em qualquer iniciativa organizacional. Não estou me referindo aos planos de divulgação de comunicação interna ou marketing, mas à conversa, o diálogo. Ao enxergarmos o negócio como uma estrutura de conversas, é possível estabelecer que as narrativas construídas sobre determinados temas solidifiquem os recados que compõem o que chamamos de cultura. Ou seja, organizar adequadamente estas conversas pode, sim, apoiar um ambiente seguro psicologicamente. E, ainda no tema, uma das características de ambientes seguros é justamente a existência de conversas francas, transparentes e valorosas.

PC: O que fazer quando um gestor altamente competente é o responsável por criar um ambiente de trabalho psicologicamente inseguro?

Essa é uma pergunta interessante, pois, alguém pode ser visto como competente apenas pela sua entrega técnica? Um gestor, em uma cultura madura, só é visto como “altamente competente” quando – além de excelência técnica – também apresenta excelência ética. Naturalmente, isso tem a ver com empresas que percebem o quanto se trata de um elemento cultural, não apenas do departamento de RH.

PC: Em empresas pequenas, onde o dono lida diretamente com os funcionários, é possível reverter uma situação de insegurança psicológica?

Sempre é possível a partir de abordagens que ampliem a consciência sobre o que realmente traz resultados efetivos e sustentáveis. Entretanto, como defendi até aqui, trata-se de um elemento que define a cultura do negócio, que deve ser avaliado por todos que decidem fazer parte dele. Uma escolha importante sempre.