Preconceito no trabalho: uma mulher na dança contra o machismo

Preconceito no trabalho

Veja se essa profissão é para você!

Quando criança, Aline Cleto sonhava em ser ginasta. Mas, desde a primeira vez que entrou em uma escola de dança de salão com sua mãe, aos 13 anos, os movimentos fluidos e criativos da arte a conquistaram. Veja essa história de luta contra o preconceito no trabalho.

Aos poucos, a menina substituiu a competitividade do esporte por outros saltos, emoções e gestos. E abriu-se para a descoberta de si mesma em contato com o outro. Segundo ela, a dança traz reflexões, pois aproxima as pessoas de questões emocionais profundas.

Hoje, aos 30 anos, ela vive de sua paixão. Já deu aulas em congressos de zouk brasileiro pelo mundo afora e ainda ensina vários ritmos em duas instituições.

Nesses anos de muito trabalho e estudo, aprendeu danças de salão. Além de samba de gafieira, bolero, tango argentino, salsa, bachata e west coast swing..

Aline também pesquisa, há quatro anos, as danças urbanas: jazz funk, vogue, stiletto, femme heels e house. “Essa brincadeira, a entrega do dançar a dois é o que me motiva. Me descobrir no outro, criar, improvisar, seguir e conduzir é o que me faz feliz”.

 

PC: Como foi o início da sua carreira profissional? Teve preconceito no trabalho de dançarina?

Quando se está começando, o mais difícil não é não saber todas as técnicas e conceitos, mas não receber oportunidades.

É levar um não sem ter a chance de mostrar seu potencial. Na minha área, tudo é por indicação.

Tive que treinar dia e noite, estudar os diversos estilos. Analisei as características corporais de cada um, as diferenças entre as danças brasileiras e as latinas.Assim, pude começar a ser vista e as pessoas me indicarem e reconhecerem meu trabalho.

Mas estudar tudo isso era a parte que eu mais gostava. A dança foi se tornando difícil quando fui me deparando com as diferenças no mercado por ser mulher. Vivenciei muito preconceito no trabalho de dançarina.

Foi o mais doloroso ver colegas dando aula por serem homens, e eu sempre sendo colocada como assistente.

Até parecia que eram cargos destinados para nós, mulheres, na época. Não importava o conhecimento e há quantos anos estava na aérea, sempre seríamos assistentes de professores homens. E, não importava se esse homem sabia mais ou menos, ele sempre seria o professor e levaria a turma. Sempre existiu muito preconceito no trabalho.

Eu seria sempre aquela menina que só complementaria a fala dele. Mas, graças à luta diária de tantas mulheres, conseguimos nosso espaço no meio.

É claro que ainda há muita coisa a ser feita e muitos paradigmas a serem quebrados no preconceito no trabalho. Hoje temos mais voz e queremos que todas as mulheres tenham, na dança e em qualquer área.

Não queremos ser mais que nenhum homem e nem mais que nenhuma outra pessoa. Só queremos os mesmos espaços e o mesmo respeito que patriarcalmente homens heteronormativos de classe média alta sempre tiveram.

 

PC: Quando você descobriu a dança? O que te faz gostar do trabalho de dança?

 A dança sempre fez parte da minha vida, em festas de família, nas famosas “quadrilhas” das festas juninas da escola.

Mas principalmente com a minha mãe, que fazia aulas de dança de salão e me levava. Eu acabava fazendo aula junto, em meio a um monte de adultos, eu era a única “pirralha”, com 12 anos.

Assim que pisei na escola, já sabia que era o que queria fazer, aquilo me encantava demais. Na época, eu já fazia ginástica artística, mas não sentia o mesmo prazer que a dança me trazia.

Na ginástica havia um clima forte de competição, mas, quando eu ia para a dança, tudo era mais leve, nós dançávamos diversos estilos, era muito gostoso.

Hoje, com outra perspectiva, claro, a dança continua sendo maravilhosamente encantadora, é um lugar onde se faz amigos, me traz muitas reflexões, pois me aproxima de questões internas e emocionais fortes.

Estar em contato com o outro, compartilhando um momento de entrega é algo divino, mas, se não estamos preparados para nos doar, ou se nos doamos demais e sentimos que nosso parceiro/parceira não se doa igualmente, acontecem sensações e situações que nos fazem pensar em nossas próprias ações e emoções.

 

PC: Qual é a sua formação? Fez/faz cursos de dança ou aprendeu tudo sozinha?

Minha formação foi, basicamente, em academias de danças de salão pelas quais passei durante todos esses anos.

Mas também fiz muitos cursos e participei de congressos de dança com diversos profissionais renomados da área. Entrei para a faculdade de Educação Física em 2012 e, em 2014, recebi um convite para dar aulas de dança em congressos de Zouk Brasileiro pelo mundo afora.

Era meu sonho ir para fora, conhecer novas culturas, novas línguas – e dançando! –, então decidi trancar a faculdade.

Viajei por quatro anos, morei dois anos e meio nos Estados Unidos e voltei.

Agora pretendo finalizar o curso de Educação Física. Mas nunca deixei de fazer cursos de dança. Há quatro anos venho estudando as danças urbanas, os estilos voltados ao feminino, como Vogue, Jazz Funk, Heels, Stiletto e Dancehall. O aprendizado é constante, nunca parei e não pretendo parar tão cedo (risos). A sensação de evolução é cada vez mais prazerosa e gratificante!

 

PC: Sabemos que as artes são pouco valorizadas no nosso país e ainda sofrem preconceitos. Qual a sua opinião sobre isso? Você acredita que qualquer pessoa pode viver exclusivamente da arte de dançar e driblar o preconceito no trabalho?

 

A dança foi se tornando difícil quando fui me deparando com as diferenças no mercado por ser mulher

Todo o sistema contribui para que isso aconteça.

Temos uma educação muito precária, nossos professores não são valorizados e nossas crianças e adolescentes são colocados em situação de caos total, com salas superlotadas, e programas que foram feitos para gerar competição, nada criativos e que desestimulam mais e mais toda a classe envolvida.

Com menos investimento na educação, menos investimento nas artes. Um sistema que vê a arte separada do ensino, já é por si só um sistema quebrado!

As artes estão totalmente entrelaçadas com os ensinos de base, estimulando a criatividade, os sentidos, a socialização e tantos outros benefícios.

Mas, infelizmente, hoje fazemos parte desse sistema, onde uma pequena parcela da sociedade tem acesso à cultura, e, como consequência, não valoriza porque não entende a importância dela em nossas vidas.

Ainda com essa realidade, sigo acreditando que totalmente possível viver da arte e do que quisermos. Coloque suas energias nisso e faça de coração que as conquistas e realizações aparecem!

 

PC: Como é a sua rotina de trabalho?

Cada dia estou em um lugar, dando aulas em horários diferentes. Isso não quer dizer que seja uma vida bagunçada ou mal organizada. Sigo uma agenda programada pelo menos um ano antes.

Ao longo da minha carreira, consegui fechar eventos que exigem compromisso com datas, então deixo tudo organizado.

Hoje, a maioria das aulas que dou é particular: tenho três turmas em duas escolas, mas já cheguei a dar aula em várias escolas para várias turmas. Faço aulas de balé e de Jazz Funk, participo de um grupo de estudos de Tango e malho.

Comecei a estudar italiano e também dou aulas de ZoukLadies. Quase todos os finais de semana tenho congressos e workshops de dança.

No próximo mês, abro um grupo de estudos de Zouk Brasileiro com um amigo mega profissional!

 

PC: Quais características são fundamentais para ser um bom trabalho nessa área?

Além do amor pela arte, o compromisso com o outro.

As danças de salão são dançadas a dois, então, se você pensa em dançar para si mesmo, ou para fora, exibindo movimentos e passos complexos, você dança para chamar atenção e não cria conexão com quem está dançando.

O ego no mundo das artes é muito grande, a vaidade cega, muita gente se torna arrogante nesse meio, por estar em uma posição de destaque.

É claro que se falarmos de dança show para palco ou de dança de alto nível para competidores, é uma outra situação. Nesse caso, o objetivo é se superar e elevar o potencial corporal ao máximo.

Mas quando trazemos essa realidade para salas de aulas e para os sociais, vejo muita gente tratando alunos como se estivessem fazendo um favor a eles, não olham no olho, não cumprimentam e, principalmente, têm uma atitude de superioridade.

Humildade, simplicidade e empatia são características que valorizo demais, e busco estar com pessoas que tenham estes mesmos valores. Tento passar um pouco disso para quem não tem.

 

PC: Quais são os maiores desafios que o trabalho de dança enfrenta no dia a dia? Podemos falar do preconceito no trabalho como principal?

Sim. Ser julgado e julgar os outros. Em qualquer aérea e ambiente somos analisados e comparados o tempo todo.

Automaticamente acabamos fazendo o mesmo, e criamos expectativas em cima de tudo, nos cobramos.

Foi muito difícil começar a observar isso em mim, perceber o quão negativa estava sendo em meus pensamentos.

Sempre vinham frases do tipo “você está ruim nisso”, “é muito difícil para mim”, “não vou conseguir”, “estou torta”, “estou feia”, e por aí vai.

Até que percebi que pensamentos negativos não me ajudavam em nada, muito pelo contrário, me impediam de seguir e conquistar o que eu queria.

Passei a pensar coisas como “poxa, tenta mais uma vez”, “leva tempo para entender como esse movimento funciona, tenha calma e continue praticando”, “não estou torta ou feia, meu corpo só não é igual ao da professora, ou ao de outro fulano”.

Pensamentos assim nos impulsionam muito mais além, e isso vem com o fato de você acreditar em si mesmo e no seu potencial.

 

PC: E com relação ao mercado de trabalho?

Tem os problemas estruturais da aérea, como pessoas que não valorizam o próprio trabalho e cobram muito mais barato por uma aula que provavelmente será de má qualidade, simplesmente para ter mais alunos.

“Profissionais” que fazem pouquíssimos meses de aula e já saem dando aulas sem muito conhecimento didático e prático.

Muita gente trabalhando sem se reciclar, se atualizar, falando coisas em aula que eram ditas há dez anos, tanto na parte técnica como em conceitos mais sociais. Algo muito comum era dizer “que as mulheres foram feitas somente para seguir e não precisam pensar enquanto dançam”. E aí já não é mais culpa do preconceito no trabalho.

Aliás, ainda há uma parcela muito grande de professores machistas e homofóbicos. É bastaste triste, pois a arte vem para quebrar todos esses preconceitos e paradigmas, mas isso é um reflexo da nossa sociedade.

Repetimos comportamentos do nosso dia a dia na sala de aula, e o mais triste é ver os próprios professores e professoras que, na teoria, deveriam estar evoluindo esses conceitos e trazendo um clima inclusivo para as aulas, acabam segregando e dizendo que os que buscam outras coisas estão errados, julgam e se colocam como “donos da verdade”.

Enquanto olharmos somente para os nossos umbigos, e continuarmos pensando que só existe a sua própria verdade, a evolução seguirá a passos lentos, muito lentos!

 

PC: O que é sucesso para você?

Uau… Sucesso é poder conquistar sonhos! Realizar pequenos e grandes desejos.

É estar feliz com o que construiu e vem construindo, com o que se ama fazer.

É acordar todos os dias e saber que está fazendo o que te deixa feliz e faz outras pessoas felizes também! Sou grata por fazer o que amo, e sou bem sucedida por viver, a cada dia, esse sonho que é dançar e viver da arte.